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Chega de Pânico: nosso posicionamento sobre a linguagem neutra e o apagamento da mulher

Atualizado: 15 de nov. de 2021


Está rolando uma discussão entre grupos de mães na internet se colocando contra a demanda do movimento trans pela linguagem neutra e inclusiva em temas que tratam da reprodução humana - ou, esse negócio de trazer gente ao mundo e dar existência às pessoas. Achamos necessário nos manifestar pública e oficialmente, porque o rumo dessa prosa tá perigoso, ruim pra todo mundo, inclusive para o próprio grupo de mães que se dizem feministas. A gente vai trazer um resumo do caso e em seguida tentar organizar as ideias a partir de alguns compromissos propositivos que guiam a atuação da Política é a Mãe na vida analógica e na vida virtual.


Resumo do caso: Em se tratando de questões reprodutivas, existe a possibilidade de uma linguagem neutra para acolher melhor uma realidade já existente: de homens trans e pessoas não binárias. Exemplos que mais circulam por aí: “pessoas que gestam”, “pessoas que engravidam”, “leite humano”, “pessoas com útero”.


A polêmica é que tem gente considerando que isso apaga as palavras “mulher” e “mãe” e, consequentemente, interfere em políticas públicas relacionadas à questões reprodutivas. Aqui, nós vamos partir do princípio de que uma nova linguagem não necessariamente apaga ou exclui as já existentes.


Vale a ressalva de que as categorias de mulher e mãe não são universais e nem encerradas em si mesmas. Elas são vivas e podem transbordar os significados que a maior parte das pessoas têm sobre o que é ser mulher e o que é ser mãe. São categorias que foram construídas historicamente, em relação ao homem, que é o único sujeito universal e supostamente incontestável, atribuindo significados binários sobre um corpo sexuado. Ou seja: dizendo o que seria “coisa de mulher” e o que seria “coisa de homem”, e usando como base o corpo biológico para inscrever e justificar uma construção social heterocisnormativa desde a gestação (vide chás de revelação).


Vale lembrar que uma ‘di-visão’ do mundo em forma binária (com o perdão da redundância), cartesiana, que cria oposições, é uma percepção colonizadora. Nele, a mulher só existe como categoria quando é vista em relação ao homem - que seria o representante das "pessoas". Mas essa é uma visão eurocêntrica, que se espalhou cultural e academicamente para o mundo, mas não é uma realidade universal. É nesse binarismo que a mulher é o outro, como mostrou Simone de Beauvoir, e ocupa uma posição de subalternidade e opressão em relação ao homem. Nessa lógica, as mulheres negras seriam o outro do outro, como bem acrescentou a escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar, Grada Kilomba. E talvez seja o momento de adicionar que as mulheres trans são o outro, do outro, do outro.


E se essas categorias de mulher e mãe não são universais, então, podem explodir e transbordar em novos sentidos e significados que acolham pessoas que não se encaixem e nem se reconheçam nelas e desejem outras manifestações de existência que não sejam pautadas na biologia e nas atribuições arbitrárias que se associam a ela. Vale ler Paul B. Preciado, filíosofo transgênero que faz do próprio corpo um palco para protagonizar a dissidência desse binarismo sexo-gênero. A vida e a obra dele reiteram que “biologia não é destino”, uma frase que a professora Carla Cristina Garcia, autora do livro Breve História do Feminismo, usa muito para tratar desse tema.


Mulher é só quem tem útero? Mulher é só quem menstrua? Mulher é só quem gesta? Como faz pra definir então uma mulher que tem que tirar o útero na menopausa, e/ou fez uma mastectomia e nunca teve filho? Ela está fora da categoria mulher? Se a gente for considerar a biologia como lei universal, então essa pessoa sem mamas, sem útero, sem filho, sem menstruação, passa a ser um homem? Ou se ela tiver peitos proeminentes é que a faz mulher? E, uma pessoa que nasceu com útero, mas não performa os papéis atribuídos a biologia feminina, ou seja, um homem trans, que menstrua e engravida e quer ser considerado em sua existência fora da norma social por um nome que acolha sua realidade. Essa pessoa tem que obrigatoriamente se encaixar na categoria mulher? Não pode ser considerada gestante? Não é violento conformar uma existência a uma norma que sexualiza uma biologia?


E em relação às mães: é quem gesta e pari? É quem amamenta? É quem cuida? A mãe - como figura do cuidado - pode ser biológica, adotiva, a tia, a vó, uma aldeia. Será que não valeria a gente requerer que os padrões de cuidado atribuidos ao sexo feminino sejam democratizados para além de um corpo biologizado? Que toda a sociedade se implique em cuidar de crianças e humanos independentemente da identidade de gênero, raça, idade, orientação sexual. Não seria essa uma luta mais interessante para ampliar possibilidades?


A própria ideia de “mulher” e “mãe”, aliás, vem sendo organizada em discursos com referências bem estreitas há séculos, estabelecendo papéis sociais bem limitados e reforçando violências a quem se desvia dos significados que impõe. É o clássico exemplo da Nossa Senhora, que concebe uma criança sem ter transado ou da Eva, que cede ao prazer de comer a maçã e é punida. Há bem pouca margem de realidade para as mulheres para além desse binômio santa/puta. Acreditamos que o movimento trans acaba trazendo ainda mais possibilidades de existir, para além de um conhecimento (episteme) binário: macho/fêmea, mãe/pai, masculino/feminino, santa/puta.


A diferença da existência de homens trans e não binários em relação às mulheres cis (ou seja, aquelas que acreditam que seu corpo está em conformidade com a identidade da categoria mulher - falaremos disso depois) não pode e não deve ser sinônimo de aniquilação e desigualdade. E entre a possibilidade de apagamento das palavras “mulher” e “mãe”, e a realidade prática, existem, neste momento presente, 1) a completa impossibilidade de impedir o uso dessas palavras (ou vocês acham mesmo que isso vai ser banido dos formulários e da vida de um dia pro outro e ninguém nunca mais vai poder dizer mulher em voz alta?) e 2) o assombroso dado de que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, sendo que a expectativa de vida para essa população é de 35 anos, menos da metade da expectativa de vida média da população brasileira, que é de 76 anos.


Nenhuma diferença deve ser desigualdade, mas sim potência de existências. E isso vale para os feminismos. E vale para nosso posicionamento no mundo online e offline. Não à toa, muitas teóricas feministas entendem que a quarta onda feminista é Queer e não a do feminismo das redes sociais que, se contribuiram para uma discussão ampliada sobre os feminismos, não trouxeram uma nova perspectiva de emancipação diferente das ondas anteriores. É por isso que entendemos que o movimento trans é mais uma força com demandas específicas que se soma à uma luta pela liberdade dos corpos diferentes da norma (do homem branco heterocisnormativo e do seu correspondente da mulher branca cis heteronormativa), inclusive para as mães. E isso não diminui a força dos feminismos, incluindo as mães feministas, mas diversifica, ampliando vozes contra o verdadeiro opressor: o da norma, do poder normativo e do padrão branco-hetero-cis-normativo-capitalista como única possibilidade de organizador social.


Entendemos que uma linguagem que nomeie adequadamente a população trans, ou chegue o mais próximo disso, pode ser adotada em políticas públicas relacionadas às questões reprodutivas sem nenhum prejuízo para as mulheres/mães cis que quiserem continuar se dizendo mulheres-mães. Sabemos que é importante coletar dados para saúde pública: por isso todas (ou todes!) as opções precisam ser consideradas - mulher cis, mulher trans, não binário etc. Assim, podemos direcionar de maneira mais efetiva as ações para os grupos específicos. E achamos bom vocalizar isso, porque o silêncio para nomear existências diversas, nesse e em muitos casos, pode significar a morte. A linguagem é a ação que permite a visibilidade e a existência, dizia Audre Lorde em seu discurso de 1977, que virou texto sob título Transformando o silêncio em linguagem e ação. Nosso silêncio não nos protegerá, ela disse.


Mas como e sobre o quê nós mães estamos vocalizando quando se trata da linguagem neutra? Nossas certezas sobre o que é ser mulher e ser mãe contribuem para existências diferentes ou para a invisibilidade de alguém? O contrário do nosso silêncio é um discurso que limita e decide quem é mulher e quem não é segundo padrões biológicos, limitados e limitantes? É um discurso que rivaliza e hierarquiza opressões? É um discurso que mobiliza emoções sobre a segurança da mulher às custas da exclusão da segurança de outras pessoas?


Vale estarmos atentas para essas questões antes de compartilhar certezas. Do mesmo modo que acontece quando apontamos machismo na fala de um homem ou sinalizamos racismo na fala de uma pessoa branca, sinalizar transfobia no discurso de mulheres-mães é mais um chamado a autocrítica e revisão interna do que silenciamento. É mais um pedido para ouvir mais do que se fala, e talvez ouvir mais de quem se fala. Somos criados nessa cultura machista, racista e transfóbica e precisamos cuidar para não reproduzir essas opressões por inércia, recaindo, inclusive, em falas e métodos bastante similares aos grupos conservadores e de extrema direita, que não só usam de teorias ultrapassadas academicamente, mas também mobilizam afetos irracionais sem base real.


E aqui, vamos listar um pouco o como vimos que a discussão tem sido feita entre alguns perfis de mães, e com a qual discordamos:


1. Tentar definir quem é mulher e mãe apenas a partir da biologia.


Acho que ficou claro com os exemplos que demos anteriormente, que atrelar as categorias de mulher e mãe apenas pela biologia é limitante e limitado. Na academia chama-se determinismo biológico.


É na academia também que surgiu o conceito de gênero, muito manipulado, principalmente, pela igreja e pelo estado. Mas é um termo que surgiu da necessidade de pensar a relação socialmente construída do que é ser homem e do que é ser mulher para manter uma organização e uma estrutura de poder. Ou gênero como uma “categoria social imposta sobre um corpo sexuado”, como mostrou a historiadora Joan Scott, em seu artigo que é um marco dos estudos de gênero, chamado Gênero: uma categoria de análise histórica (SCOTT, pág.75).


Ou seja, o conceito de gênero binário, se inscrevendo a partir da biologia, vem estruturando as relações sociais, mas não significa que seja a única possibilidade. É apenas a que vem sendo contada de forma mais incisiva, violenta e colonizadora, com mais imagens, histórias, organizações políticas e sociais que impactam na identidade subjetiva das pessoas. Tudo isso junto constrói socialmente o gênero e também uma história da verdade sobre o que é ser mulher.


2. Usar exceções para argumentar como se fossem a regra, gerando um pânico descabido. Alguns exemplos do que vimos:


“Há homens condenados que se autodeclaram mulher trans para irem para presídios femininos e lá estupram as detentas”


É uma falsa ameaça. Se você começar uma pesquisa básica no Google, vai ver que não existe pior lugar para as pessoas trans do que nas cadeias, onde são as maiores vítimas de estupros e outras violências, como mostra essa matéria do The Intercept. Houve um caso no Reino Unido - que tem apenas 25 mulheres trans em presídios femininos em toda a Inglaterra -, mas que com frequência é citado como se fosse a regra a se impor como um exemplo contagioso, desviando a atenção para a sofrida e violenta existência da população trans encarcerada e dos motivos pelos quais elas acabam presas.


O medo de ser abusada nos banheiros


Muitas mulheres usam esse argumento de que mulheres trans fizeram a transição para usar banheiros femininos e cometer abusos e violências sexuais. É o mesmo estilo do argumento anterior, de acreditar que casos pontuais são a regra. Quantos episódios assim se contabiliza em relação às violências diversas que mulheres cis e trans sofrem diariamente (doméstica, patrimonial, psicológica). Logicamente esses casos devem ser tratados e considerados. Só que acreditamos que devemos direcionar nossos esforços de luta para conter os opressores em comum, que estruturam uma violência sistêmica: a do padrão normativo branco-hetero-cis-capitalista, que nos oprime a todas de modos distintos de acordo com gênero, classe, raça e maternagem. Sim, maternagem. Aqui consideramos que essa é mais uma camada de opressão tanto para mulheres cis quanto para pessoas trans que são responsáveis pelo trabalho de cuidado de seus filhos e sofrem das violências relacionadas a esse cuidado.


“Agora as pessoas trans passam pela transição só para participar das olimpíadas”

Em primeiro lugar, esse pensamento desconsidera a dor inimaginável que deve ser passar grande parte da vida em dissonância entre corpo e identidade de gênero. Identificação não é um sentimento, como se tem dito por aí. Sentimentos mudam e passam velozmente. Identificação com uma identidade de gênero não.


Bastaria um pouco de alteridade para imaginar a intensidade de conflitos que deve permear esse processo de percepção de não conformidade para não acreditar que alguém se submeteria a uma transição, que mexe com emoções e dores em tantos níveis, para conseguir espaço em Jogos Olímpicos ou esportes de alto rendimento. Sem contar que os critérios para se alcançar a participação nesse nível de competição são absolutamente desafiadores e não estão ao alcance da maior parte das pessoas, incluindo pessoas trans. A transição não é um sinônimo de acesso a esporte de alto rendimento. Ou seja, não é toda mulher trans que consegue alcançar esse lugar, mas se existem raras que estão conseguindo, provavelmente merecem.


Esse argumento é mais uma exceção da exceção usada na tentativa de apontar que, segundo o senso comum, as mulheres trans teriam a “vantagem” de um corpo físico biologicamente considerado masculino.


3. Usar de falsa equivalência como argumento retórico.


A autodeclaração de identidade é o mesmo que se dizer “transvacinado”


Em primeiro lugar, é surreal que estejamos discutindo nesse nível, mas vamos lá. A autodeclaração de identidade de gênero se soma às políticas de autodeclaração etnico-racial, no qual as pessoas dizem se são brancas, pretas, pardas, etc. Assim, podem se dizer mulheres ou homens, mas também podem ampliar as possibilidades para as diferentes existências: mulher cis, mulher trans, não binários e etc. O princípio de autodeclaração confere reconhecimento para as existências invisibilizadas e, por isso, mais vulneráveis às diversas violências. A possibilidade de autodeclaração é inclusiva e não excludente e pode apoiar políticas que coíbem violências para esses grupos. Assim como no caso de cotas para negros, se há possibilidade de fraudes por conta da autodeclaração étnico-racial é a fraude que se deve combater, não a inclusão de um grupo.


Agora, com relação aos transvacinados - que é o grupo de negacionistas que dizem que estão vacinados por que se sentem vacinadas (!) e não por terem tomado a vacina - são pessoas que ignoram o pacto coletivo que estimula escolhas individuais para o bem de toda a sociedade. O fato de elas não se vacinarem, mas se declararem vacinadas, coloca em risco não apenas elas mesmas, mas um coletivo. E aí está um tipo de perversidade.


Usar da mesma lógica surreal, alienada e distópica de quem se diz transvacinado para atribuir uma equivalência ao princípio da autodeclaração é desonestidade intelectual e má-fé.


Esses são alguns dos exemplos que temos visto circular nas redes sociais, não sem muito espanto. Acompanhamos o debate tentando não dar visibilidade para quem usa dessas táticas acima; tentando acolher as dúvidas e questões legítimas que surgem sobre esse assunto; buscando trazer informações bem embasadas academicamente sem cair na tentação de responder com pressa e desinformar ainda mais; e atentas para dar palco às discussões que promovem mais possibilidades de existências de diferentes maternidades e infâncias, sem apagar ninguém.


Se você tem questões sobre o assunto, manda pra gente pelo nosso Instagram (@politicaeamae) ou pelo politicaeamae@gmail.com para entendermos quais conteúdos são necessários para seguir falando desse tema, de forma propositiva e acolhedora.


Por Renata Senlle, integrante do Coletivo Política é a Mãe, doutoranda em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra; mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP; jornalista pela Universidade Anhembi Morumbi; operária da comunicação de causas; e mãe do Bernardo.

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